Era uma tarde de muito calor. Pela janela, via minha mãe limpando nossa horta para fazermos futuros canteiros. Depois que meu pai morreu, foi a primeira vez que pensamos em plantar algo, ver a vida crescer e florescer novamente em nosso quintal. Eu estava no quarto cuidando da minha vó, de 97 anos. Em nossa família, temos Dona Maria, a matriarca. Minha vó passou por duas Guerras Mundiais, criou, sozinha, meu pai desde bebê, pois meu avô faleceu quando ele tinha apenas um ano. Ela foi professora, dedicou a vida a ensinar as pessoas, e me ensinou a ler e a escrever, aos 4 anos de idade. Eu estava ali, diante dela, refletindo sobre tudo, sua existência enquanto mulher, ser humano e suas lutas, e agradecendo por compartilhar de tanta força e amor. Montei meu “QGzinho” em seu quarto, para conseguir trabalhar e estudar ao seu lado, pois ela não sai mais da cama e se alimenta por sonda. Toda vez que seguro sua mão e olho em seus olhos, consigo me ver, é como regressar sem partir. 

Peguei um café e, então, recebi a mensagem de uma amiga, perguntando se eu havia escutado o Podcast do 4bet; respondi que não, mas que iria. Olhei pra Dona Maria, fiz um sinal para ela que estaria ali, mas que, naquele momento, estaria concentrada no Podcast, e sentei na cadeira para escutar, enquanto fazia algumas anotações. E foi aí que comecei a passar mal, literalmente. Chorei, tremi, suei, meu coração disparou, caminhei e respirei fundo. Passei pela dúvida, incerteza, insegurança, medo, muito medo, até olhar para o lado e ver uma mulher de 97 anos que viveu todos os machismos que vocês podem imaginar, por ser solteira e ter um filho, por ser professora em três turnos para alimentar meu pai. Na infância, minha avó viajava longas distâncias, a cavalo ou carro de boi; no interior do Rio Grande do Sul ainda não existiam estrada como as de hoje. Minha vó e minha mãe são as heroínas da minha história, talvez nem elas saibam a força que têm. 

Enquanto jornalista, já havia recebido muitas denúncias na vida, fontes nunca reveladas, arquivos secretos, conversas ocultas que revelavam algum tipo de segredo. Já trabalhei em casos em parceria com a ONU e Anistia Internacional pelos Direitos Humanos; sempre me posicionei a favor da liberdade de expressão e compartilhamento de informação. Mas, naquele momento, depois de tantos anos, tanta experiência em temas sensíveis, confesso que fui pega de surpresa. O poker, hoje, é minha segunda família, é minha casa, onde passo mais da metade das horas do meu dia, torcendo, acompanhando grind da galera, escrevendo post, coluna, entrevistando jogador, dialogando com colegas da área, diariamente; enfim, o poker é uma das minhas paixões, daquelas de tirar o ar, dar frio na barriga e nó na garganta. Após me recompor, depois de um longo tempo, percebi que o Podcast já havia sido postado há quase uma semana, com cerca de 20 comentários positivos, centenas de visualizações e elogios, sem nenhuma crítica. Mas como aquilo era possível?! Como aquilo estava no ar?! Como passou por diversas pessoas sem ninguém dizer nada??? Pensei em todas as alternativas que possam imaginar e nenhuma delas era aceitável. Como sinto o poker como uma família, a Liga Feminina de Poker, que abriga quase duas centenas de mulheres, são minhas irmãs.  Naquele cantinho virtual é que fui acolhida, quando entrei para o grind online. Foi nesse cantinho, também, que recebi palavras de apoio, quando meu pai faleceu e deixei de ser grinder, e foi por elas, e pela paixão ao esporte, que decidi não me afastar; eu apenas não poderia jogar mais. 

Então, em uma manhã, sentei em uma praça, sozinha, e refleti o que poderia fazer para continuar no poker e contribuir para a comunidade. Percebi, também, que existiam pautas que necessitavam ser exploradas e uma delas era a representatividade da mulher no cenário. Então tomei coragem para escrever para o Vitão, na época ainda editor-chefe do SuperPoker. Prontamente, fui acolhida pela redação e produção, e hoje eles são minha família também. Assim nasceu o Pocket Poker, uma coluna que trata exclusivamente do universo feminino e seus desdobramentos. Eu sinto tanto orgulho deste espaço, e felicidade, quando conto histórias de mulheres fantásticas, que a minha alegria é como se eu publicasse num Qualis A1. Minha pauta é feminista; minha coluna, esta coluna, é sobre as mulheres no Poker. E elas estavam ali, sendo estraçalhadas, como se fossem qualquer coisa. 

Sábado, 8 de fevereiro de 2020, às 16h39min

– Vocês viram o último Podcast do 4bet? 

– Não. 

 – Isso é piada? 

– Mano, que isso?!

– Dando unfollow now neles!

– Deve ser divulgado na mídia!

– Vamos fazer um texto manifestando nosso repúdio!

– Estou chorando ouvindo isso…

– Eles estão de acordo com tudo o que foi dito.

– Que p*** é essa?! Este é o tamanho da minha indignação! QUE P*** É ESSA?!

– A Liga tem que fazer carta de repúdio, gente!!!

– ‘Tô’ com dor no estômago…

– Sempre vira piada pro machismo estrutural ser aceito…

– Passando mal com essa merda toda, a gente luta tanto para os caras que ‘tão’ lá em cima fazer isso…

– Como irão se retratar, se não tem justificativa???

– Fiz o post pelo @empodere_se_oficial. Quem quiser, compartilha.

– Acho que já é ponto inicial para nosso desenvolvimento.

– Eu estou arrasada, é uma luta diária por respeito e espaço!

– O que dá mais nojo é a piada, a gargalhada.

– Será que conseguimos lançar a nota amanhã? #façaumgrindconsciente

– Vamos fazer do jeito certo! Educadamente, daremos uma lição em todos.  Faremos uma nota de repúdio e ações coordenadas.

Na noite de sábado (08), “Aquelas 24h de perguntas. Manda aí! #4bet10anos” foi invadido por mulheres que questionavam o posicionamento do time em relação ao conteúdo postado em todas as suas redes. Silêncio. Todas que mandavam as perguntas, mandavam o print no grupo, e uma onda começou. O post pelo “@empodere_se_oficial” já estava circulando e muitas estavam postando trechos do #07 The Podcast, em seus stories. À medida em que as mulheres foram compartilhando, muitas pediam para entrar no grupo da Liga, todas queriam lutar contra o machismo. Quando as atividades e os diálogos pararam, era quase 5 horas. 

Domingo, 09 de fevereiro de 2020, às 8h

Às 8 horas do domingo (09), já tínhamos relatos de insônia, noites em claro, angústia, choque, esperança. Às 11h30min, os homens começavam a se pronunciar; mais mulheres denunciavam e contavam relatos sobre machismos sofridos, e mais e mais mulheres solicitavam entrar na Liga. Ao meio-dia, já recebíamos dezenas de mensagens de apoio, vindas de todos os lados. Marcamos para às 16 horas nossa ação coordenada; a essa altura, a criação das hashtags iniciou; todas opinaram, e chegamos às seguintes definições:

#machistasnãopassarão #façaumgrindconsciente #pokersemmachismo #lugardemulheréeondeelaquiser #agoraequesãoelas #cbth #pokercomrespeito #mulheressempreunidas #machismoéatrasodevida #homemqueéhomemrespeitaamulher #agoraénossavez #donosdamentira #respeitemasmulheres #apoiamosasmeninasdo4bet 

13:09 – Alguém diz “meninas, vamos nos seguir para compartilharmos, comentarmos em nossas publicações hoje”. Essa lista, hoje, conta com 204 perfis de apoio e solidariedade, umas às outras, dentro da Liga.  

13:17 – É lançada, dentro do grupo, a primeira versão da Nota Oficial de Repúdio. Em um dado momento, outra menina lembra que a Liga havia surgido há um ano “seguimos construindo a história que será contada no futuro. As pautas das mulheres no poker com certeza passarão a ser levadas mais a sério, se estivermos juntas assim”. 

14:00 – Começamos a contagem regressiva para o lançamento da Nota Oficial de Repúdio, coordenada por todas nós, “precisamos que as pessoas saibam agora o que está acontecendo”.

15:00 – “Falta menos de uma hora, estou nervosa, estão nos dando ouvidos”; “O que precisamos ter claro, aqui, é que o 4Bet é um dos maiores times de poker do mundo, escutado por milhares e milhares de pessoas, vários adolescentes ouvem isso. Quando você tem um lugar de fala privilegiado, seja por quem você é, pela posição social que você ocupa, você tem que ter muita responsabilidade sobre o que você publica, produz, diz. Milhares de pessoas serão influenciadas por isso”.  

15:30 – “Genteeeeee, estou impressionada com a repercussão que isso está tomando, isso é bem importante no mundo do poker. É importante que nós, mulheres, saibamos que temos umas às outras. Estamos crescendo numa velocidade absurda!”; “Estou me sentindo acolhida, nem acredito que este dia chegou”.

15:45 – “Mantenham a calma, vamos nos organizar”. Orientações de post: foto da nota nos stories, imagem preta com a logo da Liga e texto com as hashtags, no feed. 

16:00 – “VAMOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO”; “Gente, somos mulheres com o mesmo ideal!”.

16:07 – “Canal do Youtube do 4bet sai do ar. O Podcast é retirado de todas as plataformas, sem uma nota de retratação”. 

16:15 – “A Liga repostará todas as marcações”. Até hoje continuamos repostando tudo.

16:30 – Ação coordenada da Liga para denúncia do perfil “Dono da Verdade”

17:30 – Notas oficiais de imprensa, clube, times e jogadores começam a surgir de todos os segmentos.

18:00 – Nota de apoio internacional do Herzdamen Club (jogadoras profissionais do mundo todo). “Muito bom, exatamente como no poker. Eles betaram, nós 3betamos, eles 4betaram, nós fomos all in… e eles foldaram”.

18:30 – O time 4bet Poker Team publica nota de retratação com comentários bloqueados. Chegamos em 2k de mensagens no grupo da Liga em menos de 24 horas.

19:00 – Relatos de assédio de toda ordem começam a aparecer na Liga.

Segunda-feira, 11 de fevereiro de 2020

Notas de Repúdio dos Órgãos Oficiais – CBTH / BSOP / WSOP

Após o posicionamento da comunidade de poker contra o machismo, nossa ação se tornou histórica. Tivemos voz, fomos ouvidas e respeitadas. Não atacamos pessoas, atacamos ideias. Muitos não acreditavam na repercussão, outros duvidavam, alguns aguardavam os desfechos, afinal, era apenas um “mimimi”. Encerro esta coluna de mão dadas com a Dona Maria, minha vó, e vejo nela o futuro que nunca tive. Tenho saudade do ano que vem. Olhando pela janela do quarto, penso que cansei de colher a flor que não plantei, que cansei de recolher a roupa suja que não lavei. Mesmo assim, tenho saudade do futuro, tenho saudade da mulher que serei, deste futuro que estamos construindo com luta, de mãos dadas; é a vida, vivida em trailers de filmes inéditos. Até semana que vem! 

As opiniões expressas aqui são de total responsabilidade do autor da coluna e não representam, necessariamente, a opinião do SuperPoker